domingo, 2 de agosto de 2009

Negrinhos e Ourinhos

Negrinhos e Ourinhos

Madame Verde estava sentada no trem quando ouviu o barulho da maquinista anunciando: Estação Brás. Ouviu-se o apito habitual, e as portas se abriram. Às 21h não há muita gente na plataforma, somente o número de pessoas suficientes para ocupar todos lugares do vagão, pessoas essas que entraram tão rápida e furiosamente em busca de um assento que, por algum motivo desconhecido, uma garota chegou até a se lembrar de uma boiada.
Sra. Japa, já com algumas dificuldades na vista, não conseguiu colocar seu óculos em tempo de conseguir procurar um assento vazio, de forma que foi ultrapassada pelos outros bois. O que lhe restou foi reclamar e ouvir, de pé, o mesmo apito habitual que fez as portas se abrirem, porém agora para anunciar as portas se fechando no Brás.
Mesmo se alguém no vagão tivesse reparado que essa senhora japonesa havia ficado de pé enquanto muitas outras pessoas mais jovens de descendências desconhecidas estavam sentadas, ninguém ficaria surpreso, pois todos se acostumam a tudo, é uma questão de tempo.
Madame Verde olhou para Sra. Japa de pé ao seu lado, pensou por alguns instantes e resolveu desocupar o assento ao seu lado, retirando suas sacolas de compras. Pigarreou e tossiu quando tentou falar pela primeira vez, e finalmente conseguiu na segunda tentativa:
- Ó, senta aqui. Já to tirando as sacolas.
Sra. Japa, com dificuldade, forçou a vista como se ajustasse o foco de sua retina e conseguiu com alguma nitidez ver as sacolas sendo retiradas do assento por uma saia comprida de tons verde-amarronzados e uma blusa verde regata tamanho GG, que estavam vestindo provavelmente uma mulher, de tamanho grande, e de cor mais escura que o trem, que era branco, mas não tão escura quanto o tom marrom da própria saia. Agradeceu com a cabeça, e sentou-se.
O que lhe aconteceu em seguida foi um absurdo de pensamentos, em um flash de segundo se lembrou de todas as aulas de catecismo que sua tia-avó lhe obrigava a ver, de sua mãezinha, que agora estava no céu na santa paz do Senhor Jesus, e de todas as outras pessoas que graças ao Senhor Bondoso Deus lhe deram discernimento do bem e do mal. Num impulso foi pegando as sacolas do colo da Madame Verde, “Me dá aqui que eu seguro pra você”. “Ai mas estão pesadas...”.
Sra.Japa provavelmente não escutou essa última frase pois dentro das sacolas havia algo que estava lhe instigando o tato, algo que fez com que sua curiosidade ultrapassasse sua bondade, e foi pegando todas as três sacolas do colo da outra e colocando no seu, apalpando como quem está sentindo prazer no puro ato de apalpar.
- Uma amiga minha que indicou esse lugar. Quando ela me falou eu entendi que chamava Negrinhos, mas agora pouco eu olhei na sacola e chama Ourinhos, é lá perto da casa dela.
- Quê isso... o que é? Legumes? Um abacate? Isso é um abacate?
- Toda segunda e terça, a senhora devia ir lá, toda segunda e terça tem promoção, é 38 centavos o quilo. Muito barato, 38 centavos o quilo, onde viu isso, muito barato!
- Nossa! O quilo do que?
- De tudo! Abacate, alface, limão, comprei de tudo, tudo é 38 centavos o quilo.
- Nossa senhora, muito barato mesmo. Será que tem em Belém?
- Ah deve ter, deve ter em todo lugar. Quando minha amiga me falou eu entendi Negrinhos e falei pra ela, Negrinhos tem lá em São Matheus onde mora minha filha e não é tão barato, mas agora vi que é Ourinhos, é 38 centavos o quilo de segunda e terça, acho que deve ter em Santo André, na Zona Leste, no Centro, deve ter em todo lugar.
- Ai é muito barato mesmo. Nossa, esse abacate é grande!
- Não, acho que esse é o chuchu, deixa me ver. Não, é o abacate mesmo, o chuchu eu não comprei hoje, foi da outra vez que eu fui lá nesse mercado que eu comprei o chuchu.
- Muito grande, que abacate grande. Qual ônibus que chega la?
- A senhora mora onde?
- Moro em Belenzinho, será que tem la?
- Ah tem, deve ter, quando eu chegar em casa, eu moro em Mauá né, quando eu chegar em casa eu vo ligar pra minha filha que mora em São Matheus e ela procura pra mim no computador, deve ter em todo lugar, é tão barato.
- Hum....e o limão também é 38 centavos?
- É, comprei limão também, 38 centavos o quilo de tudo, de segunda e terça! Sabe que deve ter na sacola o endereço, depois eu dou uma sacola pra senhora ver, deve ter o endereço, deixa ver.
- É, nas sacolas tem o endereço das lojas, de todas as lojas, as franquias né.
- Sempre tem, nas sacolas eles colocam os endereços das lojas pra gente poder saber, deve estar em algum lugar por aqui.
Sra.Japa apressadamente colocou seu óculos para poder ler todas aquelas letrinhas pequenas que estavam no seu colo. Infelizmente não conseguiu ver Madame Verde pegando uma das sacolas, mas felizmente conseguiu perceber que o conteúdo estava duplamente embalado por duas sacolas, senão o abacate, o limão e os legumes teriam caído em cima do seu colo assim que a Madame Verde tirou uma das sacolas de dentro da outra e pegou pra ler.
- Ourinhos chama. Eu tinha entendido Negrinhos, mas é Ourinhos. Hipermercado Ourinhos.
- Ta escrito aqui. Hi-per-mer-ca-dos Ou-ri-nhos. É hipermercado, igual o Extra.
- É, supermercado Ourinhos, num to achando onde ta escrito o endereço, às vezes num tem o endereço só tem o endereço do computador, mas aí eu peço pra minha filha ver no computador dela.
- Aqui do lado, ta aqui do lado.
Viraram a sacola de lado por um instante, e ficaram alguns segundos em silêncio lendo a lateral superior da sacola.
- Não, não é aqui, aqui fala das crianças. Deve ser do outro lado, deixo ver.
- Mas você viu que tinha uma coisa muito legal escrita, muito interessante.
- Não, lá daquele lado tava escrito pra não dar pras crianças colocar a sacola no rosto senão elas morrem afogadas.
- Quer ver, olha: “Pa-ra e-vi-tar su-fo-ca-men-to man-ter es-sa sa-co-la plás-ti-ca lon-ge de cri-na-ças e be-bês. Não u-sar es-ta sa-co-la em ber-ços..”
- É, é. Pra criança num sufocar né.
- Mas será que já aconteceu de criança sufocar nessa sacola?
- Ah, acontece direto, o tempo todo. Por isso que eles escrevem, pra todo mundo ler, sabe. Sempre acontece, sempre criança morre assim.
- Minha nossa, já pensou... vou ligar pro meu pai até.
- Seu pai?
- É, meu pai é cego, pobrezinho.
- Ah sim. É, quem é cego precisa de alguém que olhe por ele, precisa de cuidado.
- É, vo ligar e avisar pra ele, ele não sabe disso, eu não sabia disso, é muito interessante.
- Liga, e eu vo ligar pra minha filha que mora em São Matheus e vo avisar ela, eu entendi errado quando minha amiga falou eu entendi Negrinhos, aí vi na sacola, chama Ourinhos, hipermercado Ourinhos, igual o Extra, aí vo ligar pra minha filha e ela entra no computador pra pegar os endereços das lojas, aqui na sacola não ta escrito.
- Aqui do outro lado, ta escrito aqui do outro lado, ó.
Viraram a sacola do outro lado, lateral inferior. Passaram-se mais alguns segundos.
- Ourinhos ponto com bê-erre. Não, tem mais um ponto, ponto com ponto bê-erre. Agora não tem mais ponto. Não tem o endereço. Mas deve ter em todo lugar, é tão barato.
- Ah sim, quando minha amiga me falou eu quase não acreditei, peguei um ônibus sabe, deixo me lembrar, era Vila Luzita, desci no ponto final, no ponto final do ônibus Vila Luzita. Aí uma amiga minha, não a minha amiga, uma amiga dessa minha amiga, foi encontrar comigo no ponto final e a gente foi até a casa dessa amiga minha que mora ali perto, e aí ela me falou do mercado, eu tinha entendido Negrinhos né. Mas Negrinhos tem em Mauá até, já vi lá. Negrinhos é barato, mas não tão barato. Mas esse aqui é Ourinhos, eu vi aqui na sacola, deve ter em Santo André, deve ter. Deve ter lá perto da senhora, deve ter no Brás.
- Nossa, que bom.
- Vai, vai porque lá tem de tudo por 38 centavos o quilo, então, a gente foi lá eu minha amiga e a amiga da minha amiga, e é tão barato, vale a pena sabe, economiza bastante. O nome é Ourinhos. Ta aqui escrito na sacola, Ourinhos Hipermercado.
A conversa foi interrompida por uma freada um pouco mais brusca que o normal, e ocorreu das duas senhoras desviarem sua atenção por um momento. Ouviram a maquinista anunciando: Estação Mauá. E assim os olhos da Madame Verde se arregalaram e ela apressadamente foi recolhendo todas suas sacolas cheias de legumes, abacate, limão e verduras que estavam ao seu redor.
- Chegou já em Mauá, eu vou descer aqui, mas eu deixo essa sacola com a senhora, pode ir que é barato, chama Ourinhos, ta bom?
- Muito obrigada viu, Deus te acompanhe.
- Amém.
Sra.Japa ficou sozinha ocupando os dois assentos, um deles antes ocupado pela Madame Verde, segurando a sacola vazia que ganhou. Sua vista começou a doer, lembrou que tinha que tirar um pouco os óculos para não forçar demais. Tirou o óculos, que voltou a ficar pendurado por um cordão em seu pescoço ao lado de seu Bilhete Único também pendurado por outro cordão. Por alguns minutos sua mente ficou vazia como a tela de uma televisão e só voltou em si quando ouviu novamente a mesma maquinista anunciando: Estação Terminal Rio Grande da Serra. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.
Levantou do assento sem perceber a sacola vazia que ganhara da Madame Verde caindo direto do seu colo para o chão. Saiu da estação, pegou seu ônibus habitual e chegou em casa onde, como de costume, sua irmã lhe esperava. Pensou em como o dia havia passado depressa e algo veio em sua mente. Com um pequeno esforço lembrou o que era, foi caminhando feliz até a sala onde sua irmã estava sentada hipnotizada pela televisão.
- Ô Dora, você sabe se tem um supermercado aqui perto que chama Negrinhos?

Jéssica Oliveira
04/03/09 - 00:59


2 comentários:

Vebis Jr disse...

tu me add no twitter....vim visitar teu blog. Gostei bastante. added

Vebis jr

http://fotogramaexperimental.zip.net

mosdue disse...

Eu procurava na internet sobre o supermercado ourinhos e encontrei essa cronica maravilhosa, parabéns!